Os Spiced Milks, ou leites com especiarias em português, são altamente consumidos na Índia e na Ásia. Porém, de uns anos para cá, foram fortemente incorporados na cultura ocidental. Uma bebida que está criando um burburinho no mercado de produtos saudáveis é a Golden Milk ou Turmeric Latte, feita de uma mistura de leite quente, cúrcuma e outras especiarias complementares, como pimenta, canela e gengibre. Também, temos outras bebidas tradicionais da cultura indiana como os: Tulsi Milks, leite com manjericão-sagrado; Ginger Milks, leite com gengibre; Masala Chai’s, uma iguaria repleta de sabor e vida, utilizando leite com uma diversidade de especiarias.
Todas essas bebidas acabam sempre tendo um “segredinho” para conquistar os consumidores, já que cada receita traz uma combinação sinérgica única, com as mais diversas ervas e especiarias. Várias são as possibilidades de combinação de sabores, basta agregarmos biodiversidade, cultura e inovação. Os jovens amam novidades e estão mais abertos à novas experiências. Já os mais experientes, gostam de sabores e sensações que relembrem à sua infância, trazendo conforto e nostalgia. Portanto, podemos agregar valor aos novos desenvolvimentos, trazendo novas experiências sensoriais aos consumidores. Assim como, criar possibilidades de agregar a culinária tradicional brasileira aos produtos.
Algumas famílias brasileiras possuem, há tempos, suas receitas tradicionais de leite quente com adição de ervas, mel, especiarias, açúcar, dentre outros. Quando eu era mais nova, minha avó fazia um leite com canela e açúcar queimados que, até hoje, marca a minha memória. Essas receitas, geralmente, são feitas em tempos mais frios e trazem aquele conforto, aquela sensação de bem-estar, de amor, de carinho, aquele prazer em beber um leite quente com aquele sabor especial marcante e nostálgico. A este conceito é dado o nome de Comfort Food, muito usado e requisitado hoje em dia. Porém, ao aventuramos nas tradições mais antigas, podemos nos deparar com bebidas e alimentos incríveis provenientes da cultura afrodescendente, indígena, quilombola, cigana, campeira, caiçara, catingueira, dentre várias outras culturas tradicionais brasileiras.
Para podermos fazer um brainstorming de possíveis desenvolvimentos de leites ou bebidas vegetais com especiarias, com a cara do Brasil, precisamos imergir nas bebidas e alimentos de época, culturais, cerimoniais e regionais.
O Aluá é uma bebida fermentada que possui alguns mistérios da sua verdadeira origem, mas que hoje já é muito consumida nas festas juninas. É uma bebida refrigerante resultante da fermentação do milho e/ou do arroz e/ou do abacaxi e/ou da mandioca, dependendo da região, adoçadas com açúcar mascavo ou rapadura, adicionada ou não de ervas e especiarias, como cravo, erva-doce e gengibre. Há quem diga que a bebida vem dos povos africanos e indígenas brasileiros, mas também existem receitas parecidas no continente europeu e asiático. Independente da origem, se é uma bebida genuinamente brasileira ou não, ela é uma das mais tradicionais feitas aqui. Os povos indígenas, no Brasil, preparavam a bebida por meio da fermentação do milho ou da mandioca, com a adição de frutas nativas, como o abacaxi. Os africanos utilizam mais abacaxi e milho, resultando numa bebida agradável e refrescante. No Ceará existe o “Aluá de Pão”, no qual o pão de centeio, ou outro cereal, é utilizado como substrato na fermentação, juntamente com água, acrescido de especiarias, essências e, em algumas versões, de beterraba (PODESTÀ, 2016). Fonte da foto (PRANDO, 2016).
“O milho demorado n’água depois de três dias dá a esta um sabor acre, de azedume, pela fermentação. Coa-se a água, adicionam-se pedaços de rapadura e, diluída essa tem-se bebida agradável e refrigerante, pelo mesmo processo se prepara o aluá da casca do abacaxi.”(Manuel Querino – Costumes Africanos no Brasil) Fonte: (PODESTÀ, 2016).
Na época colonial, por volta dos anos 1800, o Aluá era muito popular, sendo consumido tanto pelas classes altas, quanto pelos mais humildes. Como teor alcoólico, resultante da fermentação, era baixo, a bebida era consumida tanto por crianças, quanto por adultos. Era vendida nas ruas durante as celebrações religiosas e festejos. Até hoje ela é muito utilizada em celebrações e rituais religiosos, como é o caso Festa de Nossa Senhora do Rosário, em Minas Gerais (PODESTÀ, 2016).
No norte do Brasil, geralmente, o Aluá é feito de milho triturado ou a farinha de milho. Em Belém, é feito da casca de abacaxi, gengibre, caldo de cana e sumo de limão. Em Manaus, utilizam cascas de abacaxi (postas de molho na água, por três dias, juntas às raízes de mangarataia (gengibre)), milho, açúcar, cravo e erva-doce. Ferve-se, deixa-se esfriar e depois gelar (TEIXEIRA; PAULO; MAMÉDIO, 2016). Segundo Paulo Oliveira, “A bebida foi incluída na Arca do Gosto, catálogo mundial que identifica, localiza, descreve e divulga sabores ameaçados de extinção. A iniciativa visa contribuir para recuperar alimentos e ressaltar a riqueza de produtos que a terra oferece.” (OLIVEIRA, 2019).
Por quê, então, não pensar em um leite fermentado inspirado no Aluá? Ou em uma bebida RTD (Ready to Drink) em lata? Várias são as possibilidades, o que vale é a imaginação e a coragem de arriscar!
Pesquisando sobre as bebidas típicas brasileiras, a maioria delas são alcoólicas, tanto que a mais famosa é a Cachaça. Outras da cultura indígena, também são bebidas fermentadas com elevado teor alcoólico, como a Cauim e a Caxiri, feitas por meio da fermentação da mandioca. Mas eu queria achar algo diferente e que envolvesse mais o uso de especiarias, não somente a fabricação de bebidas de cachaça aromatizadas com elas. Foi aí que encontrei a Canjinjin, uma bebida tradicional do Mato Grosso, mas que foi trazida por meio da influência africana no estado. Tipicamente, ela é feita com cachaça, mel, gengibre, cravo, canela, erva doce, raízes e outros componentes secretos, que não são revelados pela comunidade local. É tradicionalmente fabricada em Vila Bela da Santíssima Trindade, um povoado que surgiu com uma mescla dos escravos negros com os índios bolivianos e mestiços, norte do estado. Diz a crença popular que a Canjinjin tem poder energético e afrodisíaco (CARVALHO; CAMPOS; MENEGUELLO, 2017).
Fonte: (MIXOLOGY, 2012).
Para provar que vale a pena investir no setor de bebidas, a Stratistics MRC, fez uma previsão na qual o mercado global de bebidas alcoólicas, em 2017, estava avaliado em US$ 1324,1 bilhões, podendo alcançar US$ 1864,2 bilhões até 2026, com CAGR de 3,9% durante o período da previsão (AFREBRAS, 2018). A Euromonitor International avaliou que, em 2018, a indústria de bebidas não alcoólicas (nível mundial) vendeu 566 bilhões de litros no varejo (off trade) e faturou US$ 854,0 bilhões. Representando um crescimento anual das vendas de 3% (em volume), considerando todo o mercado, em relação à 2017. Até 2022, a previsão é de que o crescimento seja moderado, em torno de 3,5% ao ano. As bebidas que mais influenciarão o crescimento deste mercado são aquelas que proporcionam comodidade e/ou que trazem algum benefício à saúde das pessoas, com ingredientes funcionais e naturais. Sendo assim, as bebidas RTD’s, as esportivas, energéticas, chás, plant-based, sucos naturais e água de coco, são aquelas que apresentarão um crescimento superior de vendas em nível mundial (VIANA, 2018).
Voltando para as bebidas e alimentos típicos do Brasil, o que eu estou buscando aqui é servir de inspiração para os novos desenvolvimentos da área. Algumas vezes, pode parecer absurdo transformar uma receita tradicional de uma região ou de uma cultura, imaginando que não teria aceitação em outras regiões, mas a verdade é que sempre temos que usar essas informações para gerar insights, pensar fora da caixa e inovar. Como agregar conceitos típicos, ingredientes exóticos, receitas tradicionais e fazer com que um grande público vire consumidor?!
O Alex Atala, renomado chefe de cozinha, vem desmistificando esses conceitos e trazendo ingredientes típicos de certas regiões, ingredientes de diferentes biomas brasileiros, para as suas receitas. Independente das polêmicas geradas, se você gosta dele ou não, não quero aqui dizer que eu sou à favor do que ele fez com os quilombolas, só quero mostrar que ele conseguiu trazer e tornar acessíveis, a todos, uma vasta gama de ingredientes de pequenos produtores do cerrado, pampas, caatinga, da Amazônia e da mata atlântica (METROJORNAL, 2018). A grande sacada é trazer ingredientes regionais, exóticos, para a gastronomia contemporânea, para os novos produtos e para as categorias já existentes. Conseguir achar um equilíbrio nessas futuras formulações e tornar esses produtos objeto de desejo dos consumidores. Talvez você possa achar que produtos regionais não serão consumidos pela grande massa, mas a questão é alinhar esses insights e trazer uma fórmula com sabores mais amplos, que possam agregar o que já é certo com a biodiversidade existente no Brasil. E, claro, sempre fazendo tudo de forma ética e sustentável!
Procurando por bebidas típicas brasileiras que utilizam leite e especiarias, percebi que elas não são muito difundidas, principalmente se procurarmos receitas típicas indígenas, quilombolas e afro brasileiras. Porém, se partirmos para as receitas tradicionais de doces que utilizam leite e especiarias, encontramos várias delas. Uma receita bem conhecida é a Canjica, um prato muito típico nas Festas de São João, muito consumida na época de comemorações juninas. Fonte da foto: (SUPERMERCADOHIGAS, 2020).
Hoje, muitas receitas já foram incrementadas com leite condensado, amendoim, creme de leite, doce de leite, cacau, dentre outros. Porém, a receita tradicional é simples e leva apenas: milho verde ralado ou milho branco, açúcar, manteiga, leite e/ou leite de coco, cravo e canela. A origem da Canjica ainda é controversa e ainda não há consenso entre os especialistas sobre essa questão. De acordo com o sociólogo Gilberto Freyre, a canjica é típica dos brasileiros, uma receita de procedência nativa. De acordo com Francisco José Alves, “ela se enquadra na lista de contribuições culinárias dos índios e seria uma deliciosa herança dos Tupinambás, índios brasileiros que habitavam o litoral, quando da chegada dos europeus nos começos do século 16” (ALVES, 2011).
Por fim, trago aqui algumas especiarias brasileiríssimas para ativar a sua mente nos seus próximos desafios de desenvolvimentos de produtos. Muitas delas não são muito difundidas na culinária, sendo mais utilizadas em rituais religiosos.
A primeira delas é a Cumaru, também conhecida como baunilha brasileira. De origem amazônica, a Cumaru, na verdade, é uma árvore. O que consumimos, em forma de especiaria, é a semente do fruto dessa árvore, a Fava-de-Cumaru. Ela possui um sabor que lembra mesmo a baunilha, adocicado, mas levemente diferente, com mistura de notas de coco. É utilizada em muitas receitas e até já existe receita de brigadeiro de Cumaru (ESTADÃO, 2020). Eu utilizo o extrato de Cumaru para conferir um sabor único às minhas limonadas. Fica muito saborosa. Então, dá para pensar em vários desenvolvimentos possíveis com essa especiaria que é a cara do Brasil, não dá?!
Fonte: (ESTADÃO, 2020).
O brigadeiro, que todo mundo conhece, é um doce tipicamente brasileiro e sua história já foi muito contada. O tal do doce preferido do Brigadeiro que surgiu nos tempos de pós-guerra, no qual estava em falta o leite fresco e o açúcar. Foi aí que, então, em um dia de comemoração para a campanha eleitoral do Brigadeiro Eduardo Gomes, eles resolveram improvisar um doce com leite condensado, manteiga e chocolate (ORIGEMDASCOISAS, 2016). A receita foi um sucesso e se tornou o doce preferido de muitos brasileiros.
Outra especiaria amazônica é o Puxuri, também conhecida como noz-moscada brasileira. A diferença entre essas duas especiarias é que o Puxuri tem um sabor mentolado e lembra uma mistura de noz-moscada com cardamomo (ESTADÃO, 2019). Já pensou em uma bebida com o toque refrescante do Puxuri?! Talvez no preparo de um drink?! Gin e Tônica?! Em um chocolate?! Pão-de-mel?! Por que não?!
Do cerrado, temos a Amburana, que também é uma árvore, mas cuja semente é utilizada para aromatizar cachaça e outras bebidas. Tem sabor que lembra a Cumaru, já que possuem o mesmo princípio ativo, a cumarina, que confere o aroma característico à semente (ESTADÃO, 2019).
Vinda da África, mas já naturalizada brasileira, temos a Fava de Aridan. Com um sabor que lembra baunilha e caramelo, com notas de banana-passa e um toque defumado, é uma especiaria muito utilizada na preparação de doces em calda (ESTADÃO, 2019).
Contudo, fica aí a provocação: por que não trazermos as especiarias e receitas típicas brasileiras para as bebidas, por exemplo?! Pense numa versão de Spiced Milks com essas maravilhas de sabores exóticos da nossa terra!? Podemos seguir as tendências internacionais e trazermos especiarias e sabores brasileiros. Além de um produto legal, pode ser uma grande chance de exportação, já que traria novas sensações para os outros países, utilizando um produto que já está em alta lá fora, mas com especiarias que eles desconhecem.
Poderíamos lançar um smoothie que nos entregue a sensação de tomarmos uma canjica ou uma sobremesa láctea inspirada nessa tradição. Poderíamos, também, fazer uma canjica plant-based e trazermos novas experiências aos consumidores. Um sorvete de brigadeiro de Cumaru. Um brownie com Puxuri e Amburana. Uma sobremesa tipo pudim com Fava de Aridan. Uma infinidade de combinações sinérgicas pode vir das especiarias, ervas e tradições brasileiras. Biodiversidade aqui é que não falta!
REFERÊNCIAS
AFREBRAS – O MERCADO GLOBAL DE BEBIDAS ALCOÓLICAS FOI RESPONSÁVEL POR US $ 1324,1 BILHÕES EM 2017 E DEVE ALCANÇAR US $ 1864,2 BILHÕES ATÉ 2026, COM CRESCIMENTO DE 3,9% DURANTE O PERÍODO DE PREVISÃO, 2018. Disponível em: <https://afrebras.org.br/o-mercado-global-de-bebidas-alcoolicas-foi-responsavel-por-us-13241-bilhoes-em-2017-e-deve-alcancar-us-18642-bilhoes-ate-2026-com-crescimento-de-39-durante-o-periodo-de-previsao/>. Acesso em: 24 de julho de 2020.
ALVES, Francisco J. O enigma da canjica, 2011. Disponível em: <http://www.ufs.br/conteudo/3139-o-enigma-da-canjica>. Acesso em: 24 de julho de 2020.
CARVALHO, Jean M. de O.; CAMPOS, Sara; MENEGUELLO, Ligia. Canjinjin, 2017. Disponível em: <https://www.slowfoodbrasil.com/arca-do-gosto/produtos-do-brasil/1314-canjinjin>. Acesso em: 23 de julho de 2020.
ESTADÃO – Conheça as especiarias brasileiras e saiba como usar cada uma delas, 2019. Disponível em: <https://paladar.estadao.com.br/noticias/comida,conheca-as-especiarias-brasileiras-e-saiba-como-usar-cada-uma,70002857793>. Acesso em: 24 de julho de 2020.
ESTADÃO – Brigadeiro de cumaru, a baunilha brasileira, 2020. Disponível em: <https://paladar.estadao.com.br/noticias/receita,brigadeiro-de-cumaru-a-baunilha-brasileira,70002856204>. Acesso em: 24 de julho de 2020.
METROJORNAL – Instituto ATÁ e FRU.TO: conheça projetos de Alex Atala, 2018. Disponível em: <http://mixologynews.com.br/06/2012/mixologia/canjinjin-escravos/>. Acesso em: 24 de julho de 2020.
MIXOLOGY NEWS – CANJINJIN E O LEGADO DOS ESCRAVOS, 2012. Disponível em: <http://mixologynews.com.br/06/2012/mixologia/canjinjin-escravos/>. Acesso em: 23 de julho de 2020.
OLIVEIRA, Paulo. O RESGATE DO ALUÁ, 2019. Disponível em: <https://www.meussertoes.com.br/2019/09/05/o-resgate-do-alua/>. Acesso em: 23 de julho de 2020.
ORIGEMDASCOISAS – A Origem do Brigadeiro, 2016. Disponível em: <https://origemdascoisas.com/a-origem-do-brigadeiro/>. Acesso em: 24 de julho de 2020.
PODESTÀ, Marcelo A. de. Aluá, 2016. Disponível em: <https://www.slowfoodbrasil.com/arca-do-gosto/produtos-do-brasil/1134-alua>. Acesso em: 23 de julho de 2020.
PRANDO, Eline – Aluá de Abacaxi, 2016. Disponível em: <https://melepimenta.com/2016/01/alua-de-abacaxi.html>. Acesso em: 23 de julho de 2020.
SUPERMERCADOHIGAS – Canjica branca doce fácil, 2020. Disponível em: <http://www.supermercadohigas.com.br/post/331-canjica-branca-doce-facil>. Acesso em: 24 de julho de 2020.
TEIXEIRA, Amanda P.; PAULO, Elinalva M.; MAMÉDIO, Ilana M. P. DESENVOLVIMENTO DE UMA BEBIDA SEMELHANTE AO ALUÁ, COM FERMENTAÇÃO CONTROLADA, UTILIZANDO BACTÉRIAS LÁTICAS ISOLADAS DA FERMENTAÇÃO ESPONTÂNEA DA CASCA DO ABACAXI. Anais de Iniciação Científica: UFES – Universidade Estadual de Feira de Santana, 2016. Disponível em: <http://periodicos.uefs.br/index.php/semic/article/view/3131>. Acesso em: 23 de julho de 2020.
VIANA, Fernando L. E. INDÚSTRIA DE BEBIDAS NÃO ALCOÓLICAS, 2018. Disponível em: <https://www.bnb.gov.br/documents/80223/3686680/36_bebidas_nao_alcoolicas_2018.pdf/5f134514-2ea7-66a4-1cca-8288af18d983#:~:text=Os%20dados%20da%20Tabela%201,mercados%2C%20Estados%20Unidos%20e%20China.>. Acesso em: 24 de julho de 2020.